É preciso ver no escuro
Exposição Individual
Galeria Silvia Cintra + Box 4, Rio de Janeiro, Brasil, 2017
Na exposição É preciso ver no escuro, o artista Laercio Redondo retoma a questão da memória coletiva e seus apagamentos em quatro diferentes leituras feitas a partir de fragmentos do seu arquivo pessoal, colecionadas por ele nos últimos 17 anos. Os fragmentos foram coletados pelo artista em diferentes ocasiões, nas quais esses materiais, destinados ao descarte, se encontravam legados à deterioração ou ao desaparecimento por completo.
A exposição é composta de fotografias, cartas, textos e um filme que constrói uma teia delicada de supostos ecos do passado que ressoam no presente. Todos os elementos da exposição têm seu contexto e suporte reelaborados: uma carta escrita em alemão, datada de 1942, que boiava no mar em um porto grego, encontrada pelo artista em 2008; uma série de fotos de um casal que se fotografa mutualmente durante as férias; retratos de uma filha que jamais chega a retornar para casa dos pais durante a segunda Guerra Mundial; ou um fragmento de um filme de Super 8 de um baile de debutantes em 1974. Histórias de pessoas e lugares remotos que se conectam e potencializam a história do coletivo sob o ponto de vista individual atribuído a cada um destes personagens.
Na exposição, um texto do filósofo Pedro Duarte institui um diálogo com o trabalhos que o artista apresenta na exposição em torno das questões dos vestígios do passado em ressonância com presente.
O extravio das imagens
O destino natural das coisas é este: o desaparecimento, a morte. O acaso, porém, salva ali uma, lá outra. Nestas coisas reside um pequeno mundo diante do grande. Não são edifícios erguidos da arquitetura humana. São destroços, restos, vestígios. São pedaços deixados nesta terra pelos movimentos que homens e mulheres fizeram em suas vidas: um baile, um exílio, um amor, uma carta. Pedaços que acabariam no lixo, ou que vieram do lixo. Os despojos da história que contam uma outra história. O passado que podia passar, mas retorna em fragmentos: um frame de um filme de super 8 achado numa mudança ou o retrato perdido num velho baú, fotografias encontradas na lixeira do prédio ou correspondências boiando no mar avistadas do porto. Tudo prestes a afundar para sempre, mas que aparece por um único instante na superfície, desafiando o olhar a captar minúcias. Nada grita, apenas sussurra para a visão.
Essas imagens são obras de um historiador convencido de que atua como um adivinho voltado para o passado. Deve mostrar o ocorrido, onde ele falta. O que pensava a moça que dança, quais eram os sonhos da mulher do olhar forte, como vivia o casal passeando pelo rio, qual a relação do remetente com o destinatário da carta perdida?
Nunca sabemos. Os mortos não estarão em segurança enquanto o inimigo vencer, como dizia um filósofo alemão, e o inimigo não tem cessado de vencer. Resta-nos a esperança, embora não mais no futuro, e sim nos fragmentos do passado. Temos um longo passado pela frente, dizia agora um humorista brasileiro. Um secreto encontro parece ter sido marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Respiramos ainda o mesmo ar daquele mundo que acabou, e que não cessa de acabar. Sinto saudades de um futuro que nunca foi. Justamente porque ele nunca foi.
Por isso, permanecemos assombrados pelo nosso passado, como a família de uma mulher, cujos retratos se repetem pelos cômodos da casa. Morta, sua imagem se move para cá e para lá, vagando como um fantasma, mas também o testemunho do horror. As vivências pessoais evidentes na arqueologia dessa tradição são atravessadas pelas experiências sociais. Para cada luz que dá visibilidade a uma imagem, há uma escuridão preta que obscurece outras tantas. Cada hora em um lugar da casa, ela nos olha, enquanto a olhamos. Vigia tudo desde um fundo sem fundo do passado, desde a alma que, sem corpo vivo, paira em cima da mesa, atrás de flores, ao lado da cruz, presa na parede, entre velas. Por onde quer que se mire, lá está ela. Por onde quer que se mire, lá o passado: vaga na família, resiste na tela, resta no lixo, boia no mar.
Nada do que se envia chega como era. Nem o passado ao presente e nem a carta a seu destino. Somos feitos de extravios. Uma viagem não só no espaço, mas no tempo. O medo de perder, de se perder, de te perder. O esquecimento, porém, não apaga a memória, é o seu avesso. Lembramos apenas do que esquecemos.
E a imagem, se é a felicidade, junto dela mora o vazio. Não basta olhar o que está sob a luz. É preciso ver no escuro. Sedimentos do mundo: Como a tinta da caneta no papel que, mergulhado na água do oceano, ameaçava desaparecer. Salva no minuto derradeiro: antes não estaria lá, depois já teria afundado. Nas entrelinhas da história, estamos nós. Sós. Sob o céu. Diante do mar. Fugindo. Rindo. Líricos da vida com a secura do mundo.
Pedro Duarte
Rio de Janeiro 2017
Fotos:
Jaime Acioli